A Mulher e seu Filho Adotivo, o Urso

                                                                                                     Povo Inughuit – Groelândia (Dinamarca)

 

Era uma vez uma velha que morava em um lugar com outras pessoas. Ela morava perto da costa e quando aqueles que moravam em casas mais acima saíam para caçar, davam-lhe carne e gordura.

E, uma vez caçando como de costume, ocasionalmente capturavam ursos e comiam sua carne. Nesse dia eles voltaram para casa com um urso inteiro. A velha recebeu um pedaço das costelas como sua parte e o levou para casa. Depois de voltar para casa, a esposa do homem que matou o urso veio até sua janela e disse:

‘Querida velhinha, você gostaria de ter um filhote de urso?’

A velha foi buscá-lo e o trouxe para dentro de sua casa. O filhote estava quase congelando e a velha trocou sua lamparina* e colocou o filhote, próximo para aquecê-lo.  De repente, ela percebeu que ele se mexeu um pouco e então continuou a aquecê-lo. Depois assou um pouco de gordura, pois ouvira dizer que os ursos viviam de gordura e assim o alimentou a partir de então, dando torresmos para comer e gordura derretida para beber. Ele ficava ao lado dela toda noite.

O filhote cresceu muito rápido e a velha senhora começou a falar com ele em linguagem humana, e foi assim que ele desenvolveu a mente de um ser humano. Quando ele queria pedir comida à sua mãe adotiva, ele farejava.

A velha já não tinha mais carências, e os que moravam próximo a ela traziam comida para o filhote. As crianças vinham às vezes brincar com ele, mas aí a velha advertia:

‘Ursinho, lembre-se de guardar suas garras quando brincar com elas.’

De manhã, as crianças iam até a janela e chamavam:

‘Ursinho, saia e brinque conosco, vamos brincar.’

E quando saíam para brincar juntos, ele acabava quebrando os arpões de brinquedo das crianças, mas sempre que queria dar um empurrão em qualquer uma delas, sempre guardava suas garras. Mas finalmente ficou tão forte que quase sempre fazia as crianças chorarem. E quando ficou forte demais, os adultos começaram a brincar com ele, ajudando assim a velha e fazendo com que o urso ficasse cada vez mais forte. Mas depois de um tempo nem mesmo os homens adultos ousavam brincar com ele, tamanha era sua força, e então disseram uns aos outros:

‘Vamos levá-lo conosco quando formos caçar. Ele pode nos ajudar a encontrar focas.’

E então um dia, ao amanhecer, eles foram até a janela da velha e chamaram:

‘Ursinho, venha e ganhe uma parte de nossa pesca; venha caçar com a gente, urso.’

Mas antes do urso sair, ele farejou a velha senhora. E então saiu com os homens.

No caminho, um dos homens disse:

‘Ursinho, você deve manter-se contra o vento, pois se não o fizer, a presa vai sentir seu cheiro e se assustar.

Um dia, estavam caçando e quando voltaram para casa, chamaram a velha senhora:

‘Ele quase foi morto pelos caçadores do norte; quase não conseguimos salvá-lo. Precisamos de alguma marca pela qual ele possa ser reconhecido; pode ser uma coleira de tendões entrelaçados em volta do pescoço.

E então a velha mãe adotiva fez algo para ele usar; uma coleira de tendões entrelaçados, tão larga quanto uma linha de arpão.

Depois disso ele nunca deixou de pegar focas e ficou mais forte que o mais forte dos caçadores. Nunca ficou em casa, mesmo no pior de todos os climas e não ficou maior do que um urso comum. Todas as pessoas nas outras aldeias o conheciam agora e, embora às vezes se aproximassem para capturá-lo, sempre o deixavam assim que viam seu colar e o reconheciam.

Até que pessoas de além de Angmagssalik ouviram que havia um urso que não podia ser capturado, e então um deles disse:

‘Se algum dia eu avistá-lo, irei matá-lo.’

Mas os outros disseram:

‘Você não deve fazer isso; a mãe adotiva do urso não conseguiria viver sem sua ajuda. Se você o vir, não o machuque, mas deixe-o quieto, assim que você reconhecer sua marca.

Um dia, quando o urso voltou para casa como de costume depois da caça, a velha mãe adotiva disse:

‘Sempre que você se encontrar com homens, trate-os como se fosse um parente deles; nunca tente machucá-los, a menos que eles o ataquem primeiro.’

Ele ouviu o conselho da mãe adotiva e fez o que ela disse.

E assim a velha mãe adotiva manteve o urso com ela. No verão saía para caçar no mar e no inverno no gelo, e os outros caçadores agora aprenderam a conhecer seus costumes e recebiam parte da caça.

Uma vez, durante uma tempestade, o urso estava fora, caçando como de costume, e só voltou para casa ao anoitecer. Quando chegou, farejou sua mãe adotiva e saltou para o banco, onde sempre ficava. Então a velha mãe adotiva saiu de casa e encontrou lá fora o corpo de um homem morto, que o urso havia levado para casa. Então sem voltar a entrar, a velha foi correndo até a casa mais próxima e gritou na janela:

‘Estão todos em casa?’

‘Por quê?’

‘O ursinho voltou para casa com um homem morto, que eu não conheço.’

Quando amanheceu, eles saíram e viram que era o homem do norte, e supuseram que antes de morrer ele deveria estar correndo, pois havia tirado os agasalhos de pele e estava só de calça. Mais tarde ouviram que foram seus camaradas que incitaram o urso a resistir, porque o homem queria matá-lo.

Muito tempo depois que isso aconteceu, a velha mãe adotiva disse ao urso:

‘É melhor você não ficar comigo aqui sempre; você será morto se o fizer, e isso seria uma pena. É melhor você me deixar.’

E ela chorou ao dizer isso. Mas o urso enfiou o focinho no chão e chorou, porque não suportava ter que se afastar dela.

Depois disso, a mãe adotiva saía todas as manhãs assim que amanhecia, para ver o tempo, e se houvesse uma nuvem do tamanho de uma mão no céu, ela nada dizia.

Mas uma manhã, quando ela saiu, não havia nem mesmo uma nuvem no céu, e então ela entrou e disse:

‘Ursinho, agora é melhor você ir; você precisa encontrar seus próprios parentes que vivem longe daqui.

Mas quando o urso estava pronto para partir, a velha mãe adotiva, chorando muito, molhou as mãos em óleo e untou-as com fuligem, e acariciou o lado do urso quando ele se despedia dela, mas de maneira que ele não pudesse ver o que ela estava fazendo. O urso cheirou ela e foi embora. A velha mãe adotiva chorou durante todo aquele dia, e seus vizinhos prantearam também a perda de seu urso.

Os homens dizem que muito ao norte, quando muitos ursos saem de suas tocas, às vezes, avistam um urso do tamanho de um iceberg, com uma mancha preta na lateral.

Aqui termina esta história.

* O Qulleq ou lâmpada dos povos Inuit era uma tigela de pedra-sabão onde um pavio de musgo ou algodão ártico alimentado com óleo de gordura animal era permanentemente aceso. A lamparina era usada para secar peles de animais e cozinhar, além de aquecer e iluminar a casa. Foi um elemento fundamental para a sobrevivência desses povos. (Nota do Editor da Coleção)

 

Coletada por Knud Rasmusseb; editada e traduzida para o Inglês por W. Worster (1921).

Domínio Público.

 

Comentários

Knud Rasmussen (1879-1933) foi o explorador polar e etnógrafo que compilou esta e muitas outras histórias dos Povos Inuit. Nascido na Groenlândia de pai dinamarquês e mãe Inuit –o nome nativo de Rasmussen era Kunúnguaq– ele cresceu entre outras crianças do povo Kalaallit, aprendendo as técnicas de caça das regiões polares, dirigindo trenós puxados por cães e suportando as duras condições climáticas do Ártico .

Rasmussen é bastante conhecido pelas Expedições Thule, realizadas entre 1912 e 1933. Destacando sua Quinta Expedição (1921-1924), na qual tentou desvendar a origem dos Inuit e coletou uma série de trabalhos antropológicos, etnográficos, meteorológicos, geológicos, dados botânicos e zoológicos (Rasmussen, 1927). Nessa viagem, ele viajou 18.000 milhas em um trenó puxado por cães, da Groenlândia ao Pacífico, cruzando a calota polar no norte do Canadá e no Alasca, e sendo o primeiro europeu a cruzar a Passagem Noroeste dessa forma.

Sobre a história, “A mulher e seu filho adotivo: o urso”, Rasmussen diz que a ouviu entre os Inughuit, os ‘Esquimós Polares’, que viviam na área de Smith Sound, no norte da Groenlândia. Essas pessoas diferem do resto dos grupos Inuit devido às mudanças climáticas que ocorreram durante o século XVII. Devido as condições climáticas da época as regiões do noroeste da Groenlândia congelaram, isolando-os do resto dos grupos Inuit. Isso os levou a desenvolver uma linguagem e cultura diferenciadas, e também a perder a capacidade de construir caiaques e umiaques, o que os isolou ainda mais da outros grupos. Na verdade, quando os europeus estabeleceram contato com eles em 1818, os Inughuits pensavam que eram os únicos seres humanos no mundo (Advameg, 2020).

Naquela época, no início de 1800, a população Inughuit era estimada entre 100 e 200 pessoas, e não aumentou muito até a chegada de Rasmussen na década de 1930, quando 250 Inughuit foram contados. No último censo populacional, realizado em 2010, essa etnia havia chegado a 800 indivíduos.

Mas o fato de viver em um lugar tão remoto e ter sido descoberto ainda no século XIX não os salvou das injustiças que muitas outras culturas nativas sofreram nas mãos das potências imperialistas ocidentais. No início dos anos 1950, durante a Guerra Fria, os Estados Unidos expandiram a infraestrutura de sua Base Aérea Thule, perto de Pituffik, forçando 27 famílias Inughuit a mudarem-se para Qaanaaq, cerca de 160 quilômetros ao norte. Isso foi desastroso para a vida cultural e social do Inughuit. A única indenização pela invasão de suas terras era de natureza econômica e ocorreu em 1999, quase cinquenta anos depois de seus pais e mães, avós e avós terem sido expulsos de seu próprio território (Stern, 2009, 2010).

 

Fontes

Advameg, Inc. (2020). Inughuit – Orientation. Countries and Their Cultures. Disponível em: https://www.everyculture.com/North- America/Inughuit-Orientation.html.

Rasmussen, K. (1921). Eskimo Folk-Tales. Londres: Gyldendal.

Rasmussen, K. (1927). Across Arctic America: Narrative of the Fifth Thule Expedition. Nova Iorque: G. P. Putnam’s Sons.

Stern, P. (2009). The A to Z of the Inuit. Lanham: Scarecrow Press.

Stern, P. (2010). Daily Life of the Inuit. Santa Barbara, CA: Greenwood.

 

Associado ao texto da Carta da Terra

Princípio 15b: Proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem sofrimento extremo, prolongado ou evitável.

 

Outras passagens que esta história ilustra

Princípio 1: Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.

 

Princípio 1a: Reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente de sua utilidade para os seres humanos.

 

Princípio 15: Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.

 

Princípio 15a: Impedir crueldades aos animais mantidos em sociedades humanas e protegê-los de sofrimentos.