A Tartaruga e o Leopardo

                                                                                                 Povo Igbo – Nigéria

 

Por muito tempo o leopardo estava tentando pegar a tartaruga, até que um dia ele a encontrou em um caminho solitário.

‘Aha! Finalmente encontrei você!”, disse o leopardo. ‘Prepare-se para morrer!’

A tartaruga, sabendo que sua vida ia acabar ali mesmo, naquele momento e que não teria a opção de lutar contra seu predador disse, com um ar triste, mas calmo e determinado:

‘Posso te pedir um favor antes que me mate?’

O leopardo, maravilhado com a atitude serena da tartaruga e sabendo que não havia como a tartaruga escapar, concordou.

“Permita-me alguns momentos para preparar minha mente”, acrescentou a tartaruga.

O leopardo assentiu, novamente surpreso. Então a tartaruga começou a pular e correr na estrada, para cima e para baixo, espalhando terra em todas as direções e derrapando de um lado a outro da estrada. Por fim, ela se acalmou e, adotando um ar digno, voltou-se para o leopardo e disse:

‘Estou pronta.’

O leopardo, profundamente intrigado, perguntou à tartaruga:

‘É assim que você se prepara mentalmente para morrer? Por que você fez tudo isso?

A tartaruga respondeu:

‘Porque, a partir de hoje, quando alguém passar por aqui e vir as suas pegadas e as minhas, vai pensar: “Aqui houve um grande combate entre dois rivais de igual poder”. E assim, todos se lembrarão de que até uma humilde tartaruga já lutou, em igualdade de condições, com o poderoso leopardo. Isso lhes dará coragem suficiente para enfrentá-lo de agora em diante.’

 

Adaptado do escritor Igbo Chinua Achebe (1987).

Sob licença Creative Commons CC BY-NC-SA.

 

Comentários

…contadores de histórias são uma ameaça. Eles ameaçam todos os defensores do controle, assustam os usurpadores do direito à liberdade do espírito humano – no estado, na igreja ou mesquita, no congresso, na universidade ou onde quer que seja.

Chinua Achebe (1987, p. 141)

O nigeriano Igbo Chinua Achebe (1930-2013), mundialmente conhecido por seus romances sobre a vida na África, continua a ser um dos maiores nomes da literatura deste continente. Ao longo de sua vida, ele manteve um claro compromisso político de defender os valores africanos contra os valores ocidentais, na busca de uma voz genuinamente africana, compromisso particularmente expresso em uma palestra que proferiu na Universidade de Massachusetts-Amherst em 1975. Esta palestra se tornaria um marco no discurso pós-colonial.

Mas ser romancista não o impediu de mergulhar na tradição oral de seu povo, incluindo um bom número de contos e provérbios presentes em seus romances (como o acima). Trata-se de uma tradição oral riquíssima, visto que o Povo Igbo é um dos mais numerosos da África, com uma cosmovisão cultural e religiosa bem articulada, na qual o feminino ocupa posição de destaque e está intimamente relacionado com a Terra e a natureza. Assim, não apenas existe uma crença na existência de uma deusa da Terra, mas terras, rios, colinas, florestas e cavernas são todos regidos por divindades femininas e, daí decorre, sua conexão com temas centrais da vida humana, como agricultura, fertilidade, moralidade, costumes, beleza e bênçãos (Nwoye, 2011).

Na verdade, a visão de mundo Igbo atribui grande importância ao equilíbrio entre os princípios masculino e feminino, especialmente para o bem-estar humano. Isso foi destacado por Achebe em seu conto Igbo do Céu e da Terra, bem como em seu romance mais famoso, Things Fall Apart (1958), no capítulo 7.

Os heróis e heroínas morais da cultura igbo são oriundos do mundo animal, como podemos ver no personagem da tartaruga na história de Achebe. Para eles, a tartaruga

“… é admirada por sua capacidade de empregar sua engenhosidade criativa para encontrar soluções para os problemas da vida. Acreditam também que a tartaruga saiba quando abrir e fechar sua armadura, de acordo com as sensações de segurança ou perigo. (…) A tartaruga também é admirada entre os Igbo porque acredita-se que ela se mova em seu próprio ritmo sem seguir o ritmo de fora. Para o povo Igbo, essas qualidades refletem o emprego  da inteligência com imaginação garantindo a segurança e bem-estar pessoal. São as mesmas qualidades com as quais os igbos gostariam de ser identificados como humanos plenos. (ibid., p. 310).

 

 

Fontes

  • Achebe, C. (2000). Things Fall Apart. Oxford, UK: Heinemann Publishers.
  • Achebe, C. (1987). Anthills of the Savannah. Oxford: Heinemann Publishers, p. 128.
  • Corieh, C. J. & Nwajiaku, I. C. (eds.) (2022). Chinua Achebe and the Igbo-African World. London: Lexington Books.
  • Nwoye, C. M. A. (2011). Igbo cultural and religious worldview: An insider’s perspective. International Journal of Sociology and Anthropology, 3(9), 304-317.
  • Yashinsky, D. (2006). Suddenly They Heard Footsteps: Storytelling for the Twenty-first Century. Toronto: Vintage Canada, p. xv.

 

Associado ao texto da Carta da Terra

Preâmbulo: Os desafios futuros – O surgimento de uma sociedade civil global está a criar novas oportunidades para construir um mundo democrático e humano.

 

Outras passagens que esta história ilustra

Princípio 1b: Afirmar a fé na dignidade inerente de todos os seres humanos e no potencial intelectual, artístico, ético e espiritual da humanidade.

Princípio 9c: Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir aqueles que sofrem, e permitir-lhes desenvolver as suas capacidades e alcançar as suas aspirações.

Princípio 13b: Apoiar sociedades civis locais, regionais e globais e promover a participação significativa de todos os indivíduos e organizações na tomada de decisões.

Princípio 16b: Implementar estratégias amplas para prevenir conflitos violentos e usar a colaboração na resolução de problemas para gerir e resolver conflitos ambientais e outras disputas.