O Homen que Roubou Milho
Naçâo Zulu – África do Sul, Lesoto, Zimbabwe e Eswatine
Um dia, um aldeão foi consultar o ancião da tribo. Disse-lhe que alguém andava roubando seu milho, um pouco de cada vez, mas ao longo do tempo a quantidade subtraída só aumentava. Na noite anterior ele ficou à espreita e viu seu vizinho roubando seu milho.
O ancião da aldeia convidou o vizinho para vir a sua presença e perguntou se era verdade que ele havia roubado milho. O homem então confessou. O ancião da aldeia convocou uma reunião da comunidade para informar aos demais aldeões sobre o roubo e consultá-los sobre o que fazer.
Essa consulta, conhecida como kgotla, ocorre de acordo com regras específicas.
Os aldeões formam um círculo. O ancião apresenta os fatos à comunidade sem acrescentar nada ou fazer julgamentos. O acusado tem a oportunidade de explicar o que e por que roubou. Todos os aldeões têm o direito de opinar na ocasião, mas somente se pegarem o bastão de fala, que fica depositado no centro do círculo. Um orador não tem permissão para dizer se concorda ou discorda de um orador anterior. Qualquer ato que incorra em uma divisão deve ser evitado. Nunca há votação. Deve-se também abster-se de repetir o que já foi dito por outra pessoa. Só é permitido acrescentar algo ao que ainda não foi mencionado. Portanto, todos precisam ouvir com muita atenção. A comunidade constrói assim uma imagem ideal do que aconteceu. Durante a reunião, o ancião permanece em silêncio. Ele só reage se houver repetições ou para evitar a divisão, ou a polarização entre os participantes. O kgotla só termina quando ninguém tem mais nada a acrescentar, se anoitecer a reunião continuará no dia seguinte.
O vizinho ladrão disse que havia perdido sua colheita e sua família estava sem comida há algum tempo. Eles foram muito frugais ao alimentarem-se do que haviam acumulado e até comeram as sementes guardadas para o plantio na próxima estação e foi assim que eles sobreviveram até o momento. Quando tudo acabou, em um ato de desespero, ele roubou um pouco de milho de seu vizinho, percebendo que seu estoque ainda era considerável e este pequeno roubo não iria afetá-lo. Ele estava envergonhado porquê a fome o havia levado tão longe.
Terminada sua explicação, todos os que quiseram opinar sobre o assunto, aproveitaram para fazê-lo e depois o ancião da aldeia retirou-se por um momento para refletir.
Quando ele reapareceu no círculo, disse o seguinte ao vizinho ladrão:
‘Você roubou milho, uma ofensa que não podemos tolerar. Isso é muito sério. Mas ainda mais sério é você não ter pedido ajuda a nenhum de nós. Somos uma comunidade. Nós nos ajudamos. Eu te aviso! Se você estiver novamente em uma situação de necessidade e se recusar a pedir ajuda a qualquer um de nós, você e sua família serão mandados embora, porque novamente você incorrerá no erro de achar que não precisa de nós.’
Todos ficaram impressionados com o julgamento sábio do ancião da aldeia. No entanto, ele ainda não tinha terminado.
‘Por outro lado, o que me incomoda é que, como comunidade, não nos demos conta que essa família estava passando fome. Somos muitos. Como membros da comunidade, somos obrigados a cuidar uns dos outros.’
‘Como é que isso estava acontecendo e não vimos? Ou será que alguns de nós viram, mas ficaram calados? Esperamos muito antes de perguntar a essa família sobre seu bem-estar? Nossa saudação quando nos encontramos, expressamos que nós nos vemos. Ver e ser visto tem um significado profundo em nossa comunidade. Mesmo assim não vimos que este homem e sua família estavam passando por tamanha necessidade.’
‘Portanto, condeno a nossa comunidade a alimentar este homem e sua família, até que eles possam se alimentar novamente com a colheita de suas terras.’
Adaptado por Dick de Groot (2022).
Sob licença Creative Commons CC BY-NC-SA.
Comentários
Dick de Groot, que adaptou esta história, é professor, diretor e consultor educacional desde 1975 em diversos países da África Subsaariana. Sobre ‘O homem que roubou o milho’, de Groot escreve:
A história é uma versão adaptada de: ‘As vacas roubadas’, que aparece no livro African Tribal Leadership, de Willem H.J. de Liefde. Na África, recontei a história muitas vezes. Troquei a propriedade roubada de ‘vacas’ por ‘milho’. Roubar vacas anonimamente é muito difícil de acontecer em uma comunidade africana. Verifiquei essa adaptação com alguns amigos africanos e eles concordaram. Todos reconhecem as vacas como membros de uma família.
Tentando traçar a fonte africana desta história, parece provável que venha do povo Zulu, já que é uma história real de Ubuntu. Por outro lado, pode vir de qualquer parte da África Subsaariana, porque o Ubuntu é conhecido sob diferentes nomes. De acordo com outra fonte, Vusumzi MCongo, ex-prisioneiro político e mais tarde guia na Ilha Robben, reconheceu a história quando lhe perguntaram sobre ela. MCongo disse que os prisioneiros usaram esta e outras histórias de sua tradição oral para o Indaba, como o Kgotla, uma forma de praticar a tomada de decisão comunitária, enfatizando a importância da contribuição de todos – no passado, presente e futuro – para a comunidade em todos seus contextos (Groot, 2022).
Esta é, sem dúvida, uma das melhores histórias da Coleção Histórias da Terra. Basta ver a riqueza de princípios da Carta da Terra que ela é capaz de ilustrar nos campos da justiça social, democracia, tolerância e práticas participativas por assembleias. De fato, esta história, como aponta Dick de Groot, é uma história clássica do que pode ser chamado de visão de mundo africana do Ubuntu. É, fundamentalmente, uma compreensão da realidade social que deve ser explorada para a construção de sociedades mais justas e humanas.
Para mais informações nesta área, encaminhamos o leitor para a seção intitulada ‘A história do Ubuntu’. É escrita pelo próprio Dick de Groot e nós a publicamos, em 2022, no volume 2 da The Earth Stories Collection.
Fontes
- Fontes orais diretas.
- Groot, D. de (2022 Sep. 2). Remarks ‘The story of Ubuntu’. Personal email.
- de Liefde, W. H. J. (2002). ‘The stolen cows’. In African Tribal Leadership. Deventer, Netherlands
Associado ao texto da Carta da Terra
Princípio 13c: Proteger os direitos à liberdade de opinião, de expressão, de reunião pacífica, de associação e de oposição.
Outras passagens que esta história ilustra
Princípio 1b: Afirmar a fé na dignidade inerente de todos os seres humanos e no potencial intelectual, artístico, ético e espiritual da humanidade.
Princípio 2b: Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica responsabilidade na promoção do bem comum.
Princípio 3a: Assegurar que as comunidades de todos níveis garantem os direitos humanos e as liberdades fundamentais e proporcionam a cada um a oportunidade de realizar o seu pleno potencial.
Princípio 3b: Promover a justiça econômica e social, propiciando a todos a consecução de uma subsistência significativa e segura, que seja ecologicamente responsável.
Princípio 9: Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental.
Princípio 9b: Munir cada ser humano de educação e recursos para assegurar uma subsistência sustentável, e proporcionar segurança social e coletiva a todos aqueles que não são capazes de se manter por conta própria.
Princípio 9c: Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir aqueles que sofrem, e permitir-lhes desenvolver as suas capacidades e alcançar as suas aspirações.