Justiça

                                                                                                                                                             Algéria

 

Um dia um humilde camponês achou que a água do poço que abastecia sua família inteira estava cheirando a urina de gado. Não demorou muito para que ele percebesse que o problema vinha de um estábulo próximo que abrigava cabras, ovelhas e carneiros. Alguns meses antes, estes animais foram trazidos montanha acima por um fazendeiro vizinho.

Como não soubesse com certeza por onde corria o lençol freático que abastecia seu poço, contratou um rabdomante reconhecido para identificar de onde esta água vinha. Como ele suspeitava, o lençol freático passava embaixo do estábulo. Aproveitando a presença do rabdomante, ele resolveu visitar seu vizinho a contar para ele o que tinham descoberto.

Ao encontrar seu vizinho o camponês explicou o problema e pediu ao rabdomante para confirmar que a água que abastecia seu poço passava também, exatamente pela área do estábulo de seu vizinho. Mas o rico fazendeiro riu dele e disse que não tinha nenhuma intenção de mudar o seu estábulo. O camponês argumentou:

‘Você tem uma grande extensão de terra e poderia mudar o estábulo para uma área que não contaminasse a água da qual todos dependemos.’

‘Você está me dizendo o que devo fazer?’ Retrucou com arrogância o vizinho.

‘Se necessário levarei o caso para ser julgado pelo qadi!”

“Faça o que quiser!’ respondeu orgulhosamente o fazendeiro. Será um completo desperdício de tempo…..

E, dando as costas, ele os deixou para trás sem a menor preocupação.

Então, o pobre camponês processou o fazendeiro e o levou à corte. Em duas semanas eles se encontraram novamente em frente ao qadi, na Corte de Justiça, próximo a mesquita. O fazendeiro chegou antes da hora marcada e entregou ao juiz um presente generoso. Pior ainda, ele aproveitou da ausência do camponês para contar ao qadi sua própria versão do que havia acontecido.

Quando o camponês chegou, ele trazia em seus braços um pequeno pote com água do seu poço. Ele queria que o qadi entendesse a proporção e natureza do desastre que a localização do estábulo estava causando, contaminando as águas do lençol freático com urina.

‘Suponho que você seja o responsável por este processo’ disse o juiz tão logo ele chegou.

 “Sim, senhor juiz’, respondeu o camponês. ‘Eu movi esta ação.’

‘E por que você fez isto?’

O pobre camponês passou a explicar o que havia acontecido, incluindo o resultado da investigação feita pelo rabdomante e especificando que este estábulo era o único que existia naquela região, em um raio de milhas de distância. Ele também falou de sua conversa com o fazendeiro e de sua indiferença em relação ao assunto. Terminou dizendo:

‘Eu trouxe uma amostra de água do meu poço e o senhor pode perceber que ela cheira a urina de animais. Como o estábulo deste fazendeiro é o único que pode ter contaminado meu poço, eu peço que este estábulo seja realocado para um lugar em que não possa trazer prejuízo a ninguém.”

E, quando o camponês ia abrir o pote, para que o juiz pudesse perceber a veracidade de suas palavras, o qadi apressou-se em dizer:

‘Não! Você não precisa abrir o pote. Depois do que o fazendeiro me contou, já tenho clareza da situação. Entendo que a água do seu poço não está completamente limpa, mas não acho que o problema seja tão sério assim.’

E, com um sorriso de autossatisfação, acrescentou:

‘Se estivesse contaminada com urina de porco, que vem de um animal impuro, haveria a possibilidade de uma ação legal forçosa. Mas, como se trata de um rebanho de cabras e ovelhas, eu não acho que o dano seja tão sério assim. Ordeno que o réu dê ao autor da ação um saco de trigo como compensação pelos danos causados a qualidade da água.”

O rico fazendeiro olhou para o camponês com um sorriso triunfante e, depois de se despedir do qadi, ele dirigiu-se ao mercado com a intenção de comprar um saco de trigo e enviar para a Corte de Justiça.

Mas o camponês não deixou a sala de julgamento. Frustrado, com os lábios crispados de ira, ele destampou o pote e despejou a água na grande jarra de cerâmica, que continha a água que servia a todos incluindo o qadi.

O qadi, estupefato com o comportamento do camponês, gritou:

‘O senhor enlouqueceu?’

E o camponês, reunindo toda a sua dignidade, respondeu a ele o mais calmamente que podia:

‘Não. Mas estou com um pouco de pressa. Como a água não está contaminada com urina de porco e o problema não é tão sério, de acordo com a sentença proferida, decidi deixar a água do meu poço aqui. Então receba o saco de trigo que meu vizinho trará para mim como uma compensação pela impureza da água que aqui deixo.’

No dia seguinte, o qadi proferiu uma nova sentença, que forçava o fazendeiro a mudar a localização do seu estábulo.

Adaptado por Grian Cutanda (2020)

Sob licença Creative Commons CC BY-NC-SA.

 

Comentários

 

A única versão que encontrei deste conto algeriano, a de Jean Muzi (2006), difere desta apresentada. Ela é mais curta e as razões para a ação é uma pancada que o rico fazendeiro aplica ao camponês humilde, quando ele vai expor o que estava acontecendo. No final da história, o camponês humilde também dá uma pancada no qadi, e diz a ele que fique com o saco de trigo que o rico fazendeiro deveria trazer.

Para fazer parte da Coleção Histórias da Terra, nossa adaptação trouxe algumas mudanças, mantendo a ideia original do conto. No geral, eliminamos somente a violenta resposta de quem tinha sido injustamente tratado. Também ajustamos ao Princípio 13d da Carta da Terra (veja abaixo), que discute danos ambientais. Assim, aumentamos um pouco a história para explicar as razões da disputa entre o fazendeiro e o camponês, focando no dano ambiental.

Esta história, também pode perfeitamente ilustrar o Princípio 10d da Carta da Terra (veja abaixo) relativo à responsabilidade de grandes corporações multinacionais e organizações financeiras internacionais. Existem muitas situações em que grandes corporações destroem o ambiente e não tomam nenhuma atitude para corrigir o seu erro, confiando que as multas e compensações para sua ação danosa serão sempre mais baratas que os programas ambientais que deveriam ter para não destruir nossos preciosos ecossistemas. Esta história também ilustra estas situações.       

 

Fontes

Muzi, J. (2006). La justicia. En 30 Cuentos del Magreb (pp. 69-70). Bilbao: Bakeaz.

 

Associado ao texto da Carta da Terra

 

Princípio 13d: Instituir o acesso efetivo e eficiente a procedimentos administrativos e judiciais independentes, incluindo retificação e compensação por danos ambientais e pela ameaça de tais danos.

 

Outras passagens que esta história ilustra

 

Princípio 3b: Promover a justiça econômica e social, propiciando a todos a consecução de uma subsistência significativa e segura, que seja ecologicamente responsável.

Princípio 5e: Manejar o uso de recursos renováveis como água, solo, produtos florestais e vida marinha de formas que não excedam as taxas de regeneração e que protejam a sanidade dos ecossistemas.

Princípio 6b: Impor o ônus da prova àqueles que afirmarem que a atividade proposta não causará dano significativo e fazer com que os grupos sejam responsabilizados pelo dano ambiental.

Princípio 10d: Exigir que corporações multinacionais e organizações financeiras internacionais atuem com transparência em beneficio do bem comum e responsabilizá-las pelas consequências de suas atividades.

Princípio 12: Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, concedendo especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.

Princípio 13e: Eliminar a corrupção em todas as instituições públicas e privadas.