Os Guardiôes da Água

                                                                                                                                        Povo Mexica – México

 

Há muito, muito tempo, os quatro pontos cardeais da Terra, muitos animais e seres humanos, foram convocados para um encontro muito importante. Tlaloc, que presidiu a assembleia, informou aos presentes que era hora de tomar uma decisão conjunta sobre a criação de um novo rio. Ele precisava conhecer as suas necessidades para que esta nova fonte de vida fosse acessível a todas as espécies.

O Norte, caracterizado pela sua força e bravura, pediu que o rio fosse firme, persistente e turbulento. Mas, antes que pudesse continuar a expressar seu ponto de vista, ele foi interrompido por um peixinho fêmea que exigia que o rio fosse lento para que seus ovos pudessem se desenvolver. O que mais importava para ela era que seus filhotes pudessem crescer. A pata sugeriu mais ou menos a mesma coisa, ou seja, que o rio tivesse águas calmas para que ela pudesse nadar em paz com a família.

O Oriente, caracterizado pela temperança e pelo autocontrole, apoiou a ideia de que o rio deveria ser suave ou pelo menos fluir lentamente.

Foi então que o grupo formado pelo sapo e o crocodilo solicitou que o rio fosse muito largo, profundo e turvo, pois eles se sentiriam confortáveis ​​e seguros brincando na lama com os filhos. Houve grande alarido por causa deste pedido, porque não parecia a todos a opção mais conveniente. Alguns até acusaram o sapo e o crocodilo de tramarem para criar condições nas quais pudessem obter seu alimento mais facilmente. Foi então que o Sul, sempre justo, apelou ao restabelecimento da calma. Sugeriu a criação de poços e represas para que cada membro da assembleia pudesse ter seu espaço próprio.

‘O que o Ocidente tem a dizer?’ alguém perguntou.

Sensível e criteriosa, ela sugeriu que uma decisão ainda não deveria ser tomada porque nem todos os habitantes do reino estavam presentes e nem todos os presentes tinham tido a oportunidade de se manifestar. Ela até perguntou qual era a posição das fábricas nesta eleição. Ela então comentou que, embora o motivo do encontro fosse buscar a aprovação de um lar melhor para todos, eles não deveriam perder de vista que a água era essencial para a vida de todos e tinham que fazer a sua parte para preservá-la para sempre. Foi então que ela pediu para ouvir os pensamentos do Tlaloc.

Então ouviu-se a imponente voz do trovão que caracterizava o deus da água, dos relâmpagos e dos tremores dizer com autoridade:

‘De acordo com o que ouvi esta manhã, quero lhes dizer que todos viverão no lugar mais adequado para sua espécie. O rio terá riachos, lagoas e pântanos. Algumas partes serão profundas e outras mais rasas e haverá locais lentos e calmos, enquanto outras partes serão turbulentas e rápidas. Tudo isto para a água chegar aos oceanos e, claro, no trajeto oferecer vida e limpar o caminho.’

Na ausência da participação humana, ele continuou com os seus apelos, impondo-lhes uma missão honrosa.

‘Como os humanos não disseram nada, eles ficarão encarregados de proteger a água. Se vocês a desperdiçarem e poluírem, farei com que vocês sofram, pois toda a vida depende disso’, alertou-os.

Muitas vozes sussurravam, até que um lobo, irritado, disse a Tlaloc:

‘É injusto que todos dependamos deles para cuidar de nós, sendo tão irresponsáveis ​​e desrespeitosos. Se falharem, todos pagaremos. Como podemos ter a certeza de que cumprirão a sua missão, se não tiveram coragem sequer de expressar a sua opinião?’

Tlaloc respondeu que os animais poderiam ter certeza de que, se os humanos desperdiçassem a água, seus filhos e, consequentemente, sua espécie, seriam condenados.

‘Não se preocupem, vou me manifestar em cada gota existente, saberei com certeza quem valoriza a água e quem a desperdiça’, disse ele aos demais presentes, e continuou: ‘Humanos! Confio-lhe esta tarefa tão importante, pois todos dependemos de você, inclusive eu. Não é apenas seu dever, nem é um castigo. Escolhi vocês porque vocês são, sem dúvida, os mais capazes e, embora às vezes possa não parecer, vocês também são os mais inteligentes. Tenho quase certeza de que seus olhos podem apreciar o mundo melhor do que qualquer outra espécie. Vamos celebrar esta união cantando, dançando e comendo.’

Foi então que os Tlaloques, ajudantes do poderoso deus, vieram dançar com cestos cheios de tamales, tortilhas, chocolate e atole (bebida tradicional feita a base de milho). Todos comeram e, quando terminaram, os pássaros cantaram. Os humanos, felizes, tentaram distrair-se do que lhes foi dito e da enorme tarefa que lhes fora confiada. Logo eles se juntaram à festa, acompanhando o canto dos pássaros com violinos e flautas. Até os coelhos batiam ruidosamente os tambores. Dançaram pelos quatro cantos da Terra e foi então que, arrebatados pela alegria, se comprometeram a cuidar de cada rio, lago e nascente do nosso querido México.

Não é necessário dizer que este é o único planeta no cosmos onde existe vida conhecida, graças à água. Lembremo-nos sempre disto e transmitamos este conhecimento de geração em geração. Porém, acima de tudo, a valorização e o cuidado com o meio ambiente são primordiais.

 

Adaptado por César Eduardo Garcia Martinez  (2020).

Sob licença Creative Commons CC BY-NC-SA.

 

Comentários

No início de dezembro de 2020, a água começou a ser negociada no Mercado de Futuros de Wall Street, tal como qualquer outra mercadoria ou recurso comercial, como o petróleo ou o ouro (Fox, 2020). Isto significou que, a partir de então, os mercados deixaram de esconder as suas intenções e passaram a lutar abertamente pela privatização da água, uma mercadoria que, a médio e longo prazo, será mais valiosa que o petróleo (Fraguas, 2020).

Mas a tentativa de privatizar um bem comum como a água por parte de grandes corporações transnacionais não é nova. De acordo com o WeReport, uma rede europeia de jornalistas de investigação, empresas como a Coca-Cola, a Nestlé e a Danone estão esgotando os aquíferos, por meio da privatização dos recursos hídricos na França, Alemanha e Itália. Isto está contribuindo para poluir os rios, ao mesmo tempo que tentam parecer “ambientalmente responsáveis” através do greenwashing publicitário (Campi, 2021). Essas empresas também estão sonegando impostos.

A empresa francesa Danone afirma que “utilizam apenas os recursos que a mãe natureza nos permite” (ibid.), quando extraem milhares de milhões de garrafas de água todos os dias. Entre 2011 e 2021 esta empresa duplicou a extração de água, multiplicando, por dez, a água utilizada pela população local em Volvic, França, onde têm a sua fábrica de engarrafamento. Não é só isso: relatórios confidenciais, obtidos pela WeReport, indicam que durante os períodos de verão a Danone aumentou as extrações de água na área. Isto ocorreu em um período em que a população civil esteve sujeita a severas restrições hídricas. De acordo com documentos acessados ​​pela mídia, a Danone e os legisladores da região estão cientes dos danos causados ​​ao aquífero e aos rios há anos, sem informar a população local (ibid.).

A Nestlé, empresa suíça, com a sua fábrica de engarrafamento em Vittel, França, admitiu ter nove grandes lixões ilegais de garrafas de plástico, quatro dos quais estão enterrados e contaminando os aquíferos da região. Mas a falta de ética empresarial da Nestlé é evidente, e transborda para além do tratamento que dá à água. No início de 2021, reconheceram, num documento interno, que 60% dos seus produtos não são saudáveis ​​e que algumas das categorias de alimentos e bebidas que produzem “nunca serão saudáveis, por mais que sejam atualizadas”. Na verdade, afirmaram isto para 96% das suas bebidas (excluindo café) e 99% dos seus produtos doces e gelados (Medina, 2021).

Mas a situação mais grave é a do Aquífero Guarani. É aqui que se pode ver, em detalhe, o que as grandes corporações multinacionais estão tentando fazer. Esta é a terceira maior reserva de água doce do mundo, estendendo-se sob a superfície de um imenso território que ocupa áreas do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2018, rumores de que a Nestlé e a Coca-Cola estavam por trás da privatização do Aquífero Guarani, foram rapidamente negados (Comundia, 2018). Contudo, o Banco Mundial já tinha começado a tomar medidas para moldar as legislações nacionais destes países, a fim de facilitar os programas de investimento privado. De acordo com Hugo Lilli da plataforma Alianza Biodiversidad, “existem três formas, em termos gerais, de privatizar a água a nível mundial, e a maioria dos casos envolve o endosso de organismos internacionais como o Banco Mundial”. De acordo com Lili,

Na primeira, ocorre a venda total dos sistemas de distribuição, tratamento e/ou armazenamento pelo Estado Nacional. Na segunda, uma concessão é concedida pelo Estado Nacional para que as transnacionais se encarreguem do serviço e cobrem pela operação e manutenção do sistema em uso. E a terceira é um modelo restrito em que o Estado nacional contrata uma empresa transnacional para gerir o serviço de água em troca do pagamento de custos administrativos. Das três alternativas, infelizmente, a maioria opta pela segunda, o que implica uma pilhagem de um recurso tão significativo em que os únicos vencedores são as empresas transnacionais e os perdedores, naturalmente, são os países que possuem essa riqueza. (Lilli, 2019)

Javier Bernabé Fraguas, Professor de Relações Internacionais da Universidade Complutense de Madrid, explica a situação da seguinte forma:

Há um choque de posições relativamente ao controle e gestão desta água doce, que podem ser resumidos em basicamente duas posições: … como um recurso natural comercializável (…) que dará um peso muito importante às multinacionais que se apoderarem dele [o Aquífero Guarani]; ou, (…) como um bem fundamental que ajuda a sustentar o direito à vida no nosso planeta. (…) Estas duas posições estão em conflito no cenário internacional… e são representadas por algumas entidades que deram claramente a sua versão de como deveria ser a gestão desta água. O Banco Mundial adota a primeira destas posições. A sua posição é clara no que diz respeito à privatização. E, em contrapartida, podemos ter posições… como apontam Barlow e Clark… do bem comum, posições que colocam a água doce na América Latina como um bem comum e não como um bem público. Um bem comum implica um bem muito mais democratizante; implica, sobretudo, uma democratização no seu uso (…). Se prevalecer a privatização da água, neste caso do Aquífero Guarani, é normal que protestos e confrontos violentos voltem a ocorrer na América Latina.

(…) As suas posições podem ajudar a salvar vidas ou levar a uma pobreza provavelmente irreversível, em muitos casos a longo prazo, na América Latina. O Aquífero Guarani é um elemento de poder geoestratégico e de extrema importância. (Fraguas, 2020, 3h50’ a 5h50’ e 6h40’ a 6h55’)

Considerando que 70% do Aquífero Guarani está em território brasileiro, as palavras do Dr. Fraguas podem nos ajudar a entender por que uma conspiração judicial foi orquestrada, por meio do juiz Sergio Moro, para expulsar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da disputa política pela presidência do Brasil, a ponto de aprisioná-lo (Greenwald e Pougy, 2019). Isto foi para dar o governo ao ultradireitista Jair Bolsonaro que esteve, e está, sempre aberto às multinacionais do Norte Global que operam no Brasil.

Da Coleção Histórias da Terra, gostaríamos de expressar nossa mais profunda gratidão ao Instituto Nacional dos Povos Indígenas do México por nos dar permissão para incluir esta história para divulgação mundial. Estendemos também nossos agradecimentos a César Eduardo García Martínez, adaptador de ‘Guardiões da Água’ nesta edição mexicana.

Agradecemos também sinceramente a Álvaro Restrepo, que nos enviou o livro do Instituto Nacional dos Povos Indígenas do México da Colômbia, bem como a Elena Arquer, Martí Plà, David Nieto e Angelina Portillo, alunos do Mestrado em Cultura de Paz da Universidade de Granada, pelo trabalho de seleção das narrativas que trouxeram esta história para a Coleção.

 

Fontes

  • Campi, A. (2021.06.02). Waterstories.eu: The dark side of the European bottled water industry. Journalismfund.eu. Disponível em: https://www.journalismfund.eu/waterstorieseu-dark-side- european-bottled-water-industry
  • Comundia (2018.02.16). Coca-Cola y Nestlé se unen para privatizar la mayor reserva de agua de América del Sur (Coca-Cola and Nestlé team up to privatise South America’s largest water reservoir). Comundia. Disponível em: https://medium.com/@Comundia/coca- cola-y-nestle-se-unen-para-privatizar-la-mayor-reserva-de-agua-de- am%C3%A9rica-del-sur-5cb77aec981f
  • Fox, M. (2020 Diciembre 7). Water futures set to join likes of gold and oil and trade on Wall Street for first time ever. Business Insider. Disponível em: https://africa.businessinsider.com/markets/water- futures-set-to-join-likes-of-gold-and-oil-and-trade-on-wall-street-for- first/lm2hdz1
  • Fraguas, J. B. (2020.12.08). Vídeo Ponencia: El acuífero guaraní y la geopolítica del agua en América Latina (The Guarani aquifer and the geopolitics of water in Latin America) [Video on YouTube]. Javier Bernabé Fraguas. Disponível em:  https://youtu.be/C294-PD-8e4
  • García Martínez, C. E. (2020). Los guardianes del agua (Guardians of the water). In Zamora Pérez, N. (ed.), Crónicas de la lluvia: Leyendas de los pueblos indígenas sobre el agua, los manantiales y los ríos, pp. 33-38. México: Instituto Nacional de los Pueblos Indígenas.
  • Greenwald, G. & Pougy, V. (2019 June 9). “Mafiosos!!!” Exclusivo: Procuradores de Lava Jato tramaram em segredo para impedir entrevista de Lula antes das eleiçòes por medo de que ajudasse a ‘eleger o Haddad’ (“Mafiosos!!!” Exclusive: Lava Jato prosecutors secretly plotted to prevent Lula’s interview before election for fear it would help ‘elect Haddad’). The Intercept_Brasil. Disponível em: https://theintercept.com/2019/06/09/procuradores-tramaram- impedir-entrevista-lula/
  • Lilli, H. (2019.03.22). El acuífero guaraní en la mira del Banco Mundial (The Guarani aquifer, right on target for the World Bank). Alianza Biodiversidad. Disponível em: https://www.biodiversidadla.org/Documentos/El-acuifero-Guarani- en-la-mira-del-Banco-Mundial
  • Medina, M. A. (2021.05.31). Nestlé reconoce en un documento interno que más del 60% de sus productos no son saludables (Nestlé acknowledges in internal document that more than 60% of its products are unhealthy). El País. Disponível em: https://elpais.com/sociedad/2021-05-31/nestle-reconoce-en-un- documento-interno-que-mas-del-60-de-sus-productos-no-son- saludables.html

 

Associado ao texto da Carta da Terra

Princípio 13b: Apoiar sociedades civis locais, regionais e globais e promover a participação significativa de todos os indivíduos e organizações na tomada de decisões.

 

Outras passagens que esta história ilustra

Princípio 1a: Reconhecer que todos os seres são interligados e que cada forma de vida tem valor, independentemente de sua utilidade para os seres humanos.

Princípio 2b: Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica responsabilidade na promoção do bem comum.

Princípio 4a: Reconhecer que a liberdade de ação de cada geração é condicionada pelas necessidades das gerações futuras.

Princípio 16b: Implementar estratégias amplas para prevenir conflitos violentos e usar a colaboração na resolução de problemas para gerir e resolver conflitos ambientais e outras disputas.

O Caminho Adiante: A vida muitas vezes envolve tensões entre valores importantes. Isto pode significar escolhas difíceis. Porém, é necessário encontrar caminhos para harmonizar a diversidade com a unidade, o exercício da liberdade com o bem comum, objetivos a curto prazo com metas a longo prazo.

O Caminho Adiante: Todos os indivíduos, famílias, organizações e comunidades têm um papel vital a desempenhar.